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Como Damares Alves saiu de ministra 'periférica' a figura central do bolsonarismo

Em menos de dois anos de gestão, Damares foi de assessora parlamentar a estrela do bolsonarismo.
 

Revista Imagem - Publicado em 05/09/2020 08:50

Campanha Me Too surgiu nos EUA em 2017

Na noite da última quinta-feira (27/08), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) iniciou mais uma de suas tradicionais "lives" nas redes sociais. Além do mandatário, estão no vídeo a intérprete de libras, Elizângela Castelo Branco, e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.


Bem no começo do vídeo, Bolsonaro comemora o fato de que direitos humanos, em seu governo, significam algo "bem diferente" do que costumavam ser em governos anteriores — ao que Damares concorda balançando a cabeça. O presidente deu quase uma hora para a ministra, que escolheu o combate à pedofilia como tema principal.


De janeiro de 2019 até agora, Damares deixou a posição de figura menor dentro da Esplanada, comandando uma pasta quase sem dinheiro, para o palco principal.


Além dos afagos presidenciais, como o da última quinta, a ministra também é bem vista pelos generais palacianos e passou a coordenar a ações de governo envolvendo órgãos de outras pastas, como a Saúde e a Justiça.


No começo da gestão de Jair Bolsonaro, Damares era vista como uma figura excêntrica da "ala ideológica" do governo. Costumava ser citada na imprensa por causa de falas polêmicas, como a de janeiro de 2019 que mencionava uma "nova era" no Brasil, na qual "menino veste azul e menina veste rosa".


Agora, Damares não só participa das concorridas "lives" de Bolsonaro, como recebe elogios do chefe.


"Só uma pessoa como ela para resolver aquele assunto. Não existe melhor pessoa que a Damares naquele ministério", disse o presidente em outra live, em meados de agosto.


Segundo analistas, assessores e políticos ouvidos pela BBC News Brasil, a força de Damares está ligada à habilidade da ministra para capitalizar politicamente com pautas que mobilizam a militância bolsonarista — como o combate à pedofilia e à chamada ideologia de gênero, por exemplo.


Se deve também à popularidade da ministra com o público evangélico: um segmento com que somava 42,3 milhões de brasileiros em 2010, segundo o último Censo, e que tem cada vez mais influência política.


Ao mesmo tempo em que recebe elogios dentro do governo, opositores da ministra a acusam de promover um desmonte da política de direitos humanos no país — inclusive desidratando conselhos de representação da sociedade civil, considerados fundamentais para a atuação do governo no tema.


Além disso, a gestão dela estaria sendo inócua, segundo ativistas, em um dos temas mais caros para a ministra: a proteção aos povos indígenas.


A ministra passou a frequentar as concorridas 'lives' do presidente, e se dá bem com Michelle Bolsonaro


Nos últimos dias, a ministra também foi alvo de críticas depois que assessores da pasta comandada por ela foram ao Espírito Santo para acompanhar o caso da menina de 10 anos de idade que teve de realizar um aborto. A criança sofreu anos de abuso sexual por parte de um tio.


Agora, o Ministério Público Estadual capixaba suspeita que os assessores possam ter acessado informações sobre a menina — dados da criança foram divulgados na internet pela ativista de direita Sarah Giromini, também conhecida como Sarah Winter. A pasta nega envolvimento com o vazamento de dados, e diz que determinou uma investigação sobre o assunto.


De assessora de Magno Malta a estrela do Bolsonarismo


Coube ao atual ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, apresentar Damares Alves como a futura titular da pasta de Mulheres, Família e Direitos Humanos, ainda em dezembro de 2018. Na época, Damares era assessora parlamentar do pastor e ex-senador Magno Malta (2003-2019). Malta recusou o convite de Bolsonaro para a vice-presidência, em nome de tentar a reeleição no Senado. Acabou derrotado.


Embora fosse desconhecida do grande público, Damares já estava no radar de quem acompanhava a cena do ativismo conservador e religioso, diz o pesquisador Lucas Bulgarelli. Em seu doutorado em antropologia social na Universidade de São Paulo (USP), ele estuda a disseminação do conceito de "ideologia de gênero" no Brasil.


Coube a Onyx Lorenzoni (esq.) apresentar Damares Alves como futura ministra dos Direitos Humanos, ainda em 2018


"A Damares é uma das criadoras da Anajure (Associação Nacional dos Juristas Evangélicos), que é fundada em 2012 e que passa a tomar parte numa série de debates no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso (Nacional), relacionadas a questões tidas como 'morais', como o aborto (...), o Estatuto do Nascituro, a união civil de pessoas homossexuais (...). Um conjunto de temas nos quais ela já vinha articulando por meio da Anajure, antes mesmo de se inserir no governo federal", diz ele.


Além disso, Damares também tinha uma atuação em questões indígenas — a ministra é fundadora da Atini, uma ONG que atua junto às tribos.


"Ela era uma pessoa que já tem bastante influência, quando surge (no cenário político). E aí], talvez para muita gente de esquerda, fica essa impressão 'de onde que essa mulher surgiu?'. Mas já era uma figura bastante influente nos nichos onde o ativismo religioso ou conservador tem força", diz Bulgarelli.


"E no governo, ela passa a ter uma atuação bastante central, porque é a principal ministra que articula bastante desse conteúdo que fideliza essa base mais radical do Bolsonaro. Então, ela é um pouco o fiel da balança quando o governo sai da linha e passa a atuar em dissonância com o que a base espera", diz o pesquisador.


Um exemplo desse papel "moderador" de Damares foi visto na reunião ministerial do dia 22 de abril, que teve sua íntegra divulgada por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF): em vários momentos do encontro, Damares cobra dos demais ministros que ajam de forma coerente com os "valores" do governo Bolsonaro, diz Bulgarelli.


Crianças no foco

"Damares, tem uma coisa aqui que a gente não consegue nem falar, né? Não consegue acreditar. Estupro de bebês. De crianças. Como é isso?", perguntou Bolsonaro à ministra, na live da última quinta-feira.


"Presidente, a maior violência no Brasil hoje, registrada, é contra criança. O nosso disque-100, que é o que recebe todas as denúncias de violações de direitos humanos, em primeiro lugar, disparado, é a violência contra a criança. Em segundo lugar, contra o idoso", responde Damares.


"E aí presidente, tem gente falando por aí que essa história de pedofilia é um papo furado da direita. Chegaram a dizer que eu e o senhor estamos inventando que existe pedofilia, que é o novo discurso da direita. Leiam o relatório do Disque-100. A pedofilia é de verdade no Brasil", diz ela, referindo-se a críticos que a acusam de usar a pauta do combate à pedofilia como plataforma política.


"Não estou fazendo o enfrentamento à pedofilia porque sou sua ministra não. Já fazia isso há muito tempo atrás", diz ela, no vídeo transmitido ao vivo.


A escolha do tema, que dominou a maior parte da live com o presidente, não foi casual.


Os próprios assessores de Damares afirmam que o assunto é a prioridade da pasta. É raro o dia no qual a ministra não fala sobre o combate à pedofilia em sua conta no Twitter.



A cientista política norte-americana Amy Erica Smith estuda o Brasil e o papel da religião na política brasileira. Segundo ela, os temas "morais" escolhidos por Damares estão entre os que mais ressoam com o eleitorado brasileiro, o que ajudaria a explicar a proeminência da ministra.


"Para os evangélicos, a preocupação com o cuidado das crianças, em termos da sexualidade, é importantíssima. Claro, todos se preocupam com a proteção das crianças. Mas dentro do mundo evangélico isso é um assunto que realmente importa, que desperta muita emoção", diz ela.


"De todos os assuntos políticos, esse é o que mais mobiliza. Um exemplo: o 'kit gay'. Apesar de ser fake news, foi algo muito poderoso, justamente porque essa questão é muito importante para o público evangélico", diz a pesquisadora, referindo-se ao boato que governos do PT tinham planejado a distribuição de materiais que faziam "propaganda" da homossexualidade nas escolas.


"Uma parte do poder dela tem a ver com características pessoais dela. Mas a outra parte deve ser pelo que ela representa no mundo evangélico", diz Amy, que é professora da Universidade do Estado de Iowa e autora do livro Religion and Brazilian Democracy: Mobilizing the People of God (Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus, em tradução livre).


Segundo a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, outra faceta da atuação de Damares é a inclusão do termo "Família" no nome do ministério. A mudança faria parte de um movimento que vai além das fronteiras brasileiras.


"E um projeto de direita cristã internacional que a gente vê em vários países, inclusive nos Estados Unidos (...), (no qual se busca fazer a) disputa da família, e da ideia de família como sujeito de direitos, e de direitos humanos", diz ela, que é professora da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).


"Tanto que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos criou o Observatório da Família, órgão de pesquisa ligado à Secretaria da Família, (que também só passou a existir no governo Bolsonaro) e que estabelece parcerias com outros institutos internacionais (de defesa da família)", diz ela.


Afagos de militares e candidatura ao senado


Aos 56 anos, Damares Alves mantém um ritmo pesado de trabalho no ministério: segundo relatos, começa o dia por volta das 9h, e raramente deixa o prédio onde despacha, na Esplanada, antes das 21h. Na terça-feira (25), por exemplo, o dia começou com uma reunião às 10h, e se estendeu até as 21h.


Na agenda da ministra são frequentes os encontros com congressistas — ela trabalhou como assessora de deputados e senadores durante quase vinte anos, de 1999 até 2018.


A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) descreve Damares como uma pessoa "acessível, de fácil trato" e "mega trabalhadora".


"Ela age conforme as suas convicções religiosas. E isso não quer dizer que o ministério dela não seja laico. O ministério é laico. Só que... as atitudes dela são tomadas a partir de pensamentos cristãos. De empatia, de se colocar no lugar do outro, de não fazer o mal pro próximo, de não fazer para o próximo o que não gostaria que fizesse com ele... enfim. Ela segue todos os parâmetros cristãos", diz Zambelli, que é uma das principais defensoras do governo no Congresso.


Dentro da Esplanada, Damares é bem vista pelos ministros militares que despacham no Palácio do Planalto. Também se dá bem com a primeira-dama, Michelle Bolsonaro.


A popularidade da ministra também começou a chamar a atenção de atores políticos fora do governo: ao menos dois partidos a convidaram para ser candidata ao Senado em 2022, pelo Estado do Sergipe. Natural de Paranaguá (PR), Damares morou em Sergipe quando criança — o pai era pastor evangélico, e a família se mudava com frequência por causa do trabalho dele.


Um dos partidos que convidou Damares foi o PP, uma das principais siglas do "Centrão". Ela é filiada à legenda desde 1995.


Adversários da ministra dizem que sua gestão está desarticulando a política de direitos humanos

Missões no Governo


Recentemente, o novo prestígio de Damares dentro do governo passou a se traduzir em missões repassadas ao seu ministério — tarefas que envolvem, inclusive, coordenar esforços com órgãos ligados a outras pastas.


Ficou para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos a tarefa de organizar o plano de contingência do governo federal para atender aos grupos vulneráveis durante a pandemia da covid-19, por exemplo. Em abril, uma medida provisória deu ao MMFDH mais R$ 45 milhões para organizar a resposta à pandemia entre os vulneráveis.


Por envolver comunidades tradicionais e povos indígenas, a pasta de Damares coordenou inclusive os esforços da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, e da Fundação Nacional do Índio (Funai), ligada ao Ministério da Justiça.


Mais recentemente, o ministério também recebeu a missão de coordenar um plano de proteção às comunidades indígenas durante a pandemia da covid-19 — a construção desse plano foi determinada em um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), no começo de agosto.


Neste caso, porém, a tarefa não tinha sido foi cumprida a contento, segundo o relator do caso no Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso. O plano apresentado pela pasta era mais um relatório das ações já feitas pelo ministério, e não exatamente um planejamento detalhado dos próximos passos.


Para Luiz Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) que representou a entidade no julgamento do STF, o plano era "totalmente inviável".


"O ministro (Barroso) mandou complementar, especialmente agregando os comentários dos especialistas (independentes) que participaram (das discussões)."


Na semana passada, o governo apresentou um novo plano, parcialmente homologado, na segunda-feira (31/08), pelo ministro Barroso, que determinou ajustes, entre eles, que barreiras sanitárias fossem adotadas ainda em setembro em algumas terras indígenas, como a ianomâmi.


Para Terena, a gestão de Damares fez pouco pela proteção dos direitos indígenas.


"Em janeiro de 2019, a PGR chamou uma reunião para a gente iniciar um diálogo. Entre o governo e o movimento indígena, mediado pela PGR. E a Damares participou, ela e a sua secretária de (Políticas de Promoção da) Igualdade Racial, a Sandra Terena. Lá, elas apresentaram slides falando de uma atuação que eles teriam", diz.


"Só que já estamos terminando o segundo ano de governo, e de fato o que a gente tem observado é que nós não temos nenhuma política pública de proteção para os povos indígenas" , critica o advogado.


Política de Direitos Humanos foi desmontada, diz ex-ministra


Adversários de Damares dizem que o governo Bolsonaro está desmantelando a política de Direitos Humanos do país — e que a pasta comandada por ela é parte desse processo.


"A minha crítica não é pessoal, faço questão de dizer isso. Não faço uma abordagem pessoal. Faço uma crítica à política de direitos humanos do governo", diz a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS). Ela foi ministra-chefe da antiga Secretaria Especial de Direitos Humanos durante o governo de Dilma Rousseff (PT), de 2011 a 2014.


"Está claro que o governo não tem iniciativas para preservar os direitos humanos no Brasil. Todos os governos enfrentam situações de violação (de direitos humanos). A diferença é como enfrentam. Esse governo naturaliza (as violações). A começar por quem presidente o país. E nesse sentido, a pasta de direitos humanos é inoperante", diz Maria do Rosário à BBC News Brasil.


"Um dos vários aspectos que eu poderia citar (de desmonte) é o ataque permanente aos conselhos de representação da sociedade, como o Conanda (Conselho Nacional dos direitos da Criança e do Adolescente), o Conselho Nacional de Direitos Humanos" diz a ex-ministra.


Damares também mudou a composição do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR). Em agosto deste ano, a pasta retirou do conselho 14 representantes do movimento negro e de entidades de esquerda, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT).


"Isso desarticula a política de direitos humanos do país, porque ela é toda centrada na participação da sociedade", diz a deputada petista. "Fora o desmonte do Disque-100 que está em curso, a redução de recursos das políticas para mulheres. Há um conjunto de ações que mostram que os objetivos de fato da pasta foram desvirtuados", diz Maria do Rosário.

 

Por André Shalders (BBC)

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